A
casa, ainda com cheiro de tinta fresca, aguardava ansiosa a presença dos convidados.
Nos fundos, a grama recém plantada evidenciava as marcas dos blocos de terra,
enquanto nas salas e dormitórios, a mobília se ajeitava para dar espaço aos
passos apressados das donas da festa.
A
ideia de receber os amigos no lar há pouco comprado, partira de Suzana. Amante
de agitos e pessoas, convencera Helena a fazer o que batizou de “recepção
íntima só para amigos”. O problema era que os amigos, somando a lista de ambas,
era bem maior que duzentos, das quais Suzana contribuía com 80%.
A sugestão
que, em princípio assustara Helena, acabou por se estabelecer em definitivo em
sua mente, na medida que Suzana a convencia nos deliciosos cafés da manhã na
cama, ou à noite, em meio a carícias, beijos e movimentos convincentes.
Eis
que era chegada a hora de receber os amigos, mostrar-lhes que o amor de ambas
tinha novo endereço e que as portas estavam literalmente abertas.
Por
volta das 19 horas foram chegando os convidados. Timidamente adentravam pela
porta principal, receosos de desarrumar algo em um espaço tão arrumado, limpo e novo.
Cinco
anos de casamento estavam expostos ali nos detalhes do quadro de Dalí na
escadaria que dava acesso à suíte do casal, nas luminárias psicodélicas do
home, ou mesmo no quarto de visitas retrô. Tudo à mostra da plateia, que
enquanto adentrava aos recintos, podia tanto admirar o bom gosto do casal, como
identificá-las em suas semelhanças e diferenças.
Por
volta das 21 horas, o fluxo aumentou. Já havia ali mais de cem pessoas, num
entra e sai desvairado de cozinha, quintal, frente, banheiros, cozinha,
banheiro, quintal, banheiro, frente, banheiro, banheiro. A cerveja parecia
surtir efeito. As vozes eram mais altas e o receio de tocar em algo já
desaparecera. Alguns copos iam ao chão, enquanto tufos de grama se deslocavam
alhures.
O
teor alcóolico no sangue de Helena a impossibilitava de se aborrecer com a
desordem, enquanto Suzana percorria afoita cada roda de amigos, ciceroneando-os
como uma verdadeira anfitriã.
Lá
pelas tantas, todos os cômodos já haviam sido invadidos, com exceção da suíte
do casal, trancada. A libido das pessoas davam sinais de que o álcool se fizera
presente, e as danças se tornavam mais sensuais, na medida que também as
paqueras eram menos discretas.
Olhares,
mãos, tempo no banheiro mais demorado eram indícios que a festa se aproximava
do seu clímax. Talvez por conta de dar atenção às visitas, ou talvez por outro
motivo desconhecido, Helena e Suzana passaram pouco tempo juntas na festa. Se
cruzavam aqui e ali, para subir latinhas de cerveja no congelador ou retirar
mais um saco preto de lixo lotado até as tampas. Suzana, na medida que via a
sujeira se avolumando, evitava Helena, com receio de que esta falasse algo que
a aborreceria e estragaria com aquele momento que há muito aguardara e
planejara.
No
quintal, bocas se encontravam e a luz apagada. Onde antes havia muros de
concreto, passou a existir um muro de pessoas. Mãos desfilavam em corpos que se
moviam freneticamente.
Helena
descia as escadas quando observou três novas pessoas chegando. Eram mulheres
bem femininas, bonitas e sorridentes, não era da sua lista, com toda certeza,
da de Suzana. Aquela festa lhe atentou para o fato de que não conhecia metade
dos amigos da namorada.
Helena
fez as honras da casa, se aproximando do grupo. Enquanto mostrava onde estava a
geladeira e os comes, percebeu o olhar de uma delas entorpecido no seu. Talvez
o álcool, ou outro motivo desconhecido, a fez subir um calor ao sentir aquele
olhar. Procurou se concentrar nas suas palavras e terminar a explicação.
Instruções dadas, duas saíram, mas justamente ela, não.
Seu
nome era Fernanda, eram amigas de uma amiga de Suzana e após terem ido a um
barzinho, entediante, resolveram arriscar. Helena sorriu com a autenticidade da
garota e recebeu um elogio sobre seu sorriso. Corou. Fernanda percebeu e fixou
o olhar ainda mais penetrante em Helena. Seu rosto permaneceu em chamas. Ao
mesmo tempo que não tinha vontade de sair daquela situação, imaginava o perigo
da mesma. Aquele um metro e meio de pele morena e cabelos pretos e enrolados
prendia toda a sua atenção. Mente e corpo divergiam sobre o que fazer, e
parecia que o corpo dominava a situação.
As
amigas de Fernanda vieram chamá-la para ver alguém no quintal, e ela foi. Um
misto de alívio e vazio fez Helena permanecer fixa ali. Resolveu fazer o
trajeto de volta ao quarto, quando se deparou com o olhar de Suzana. Tentou
parecer natural, perguntando sobre alguma obviedade da festa e saiu meio
desconcertada. Ela não poderia perceber, pensou, mas o fato é que Suzana era
muito observadora. Às vezes ela desconhecia por completo uma situação da qual
Helena fazia parte, mas em poucos segundos de conversa era capaz de tomar
conhecimento por completo da situação, como se estivesse presente. Helena temia
essa “vidência” de Suzana e evitaria ao máximo lhe dar motivos para uma conversa.
Embora
a racionalidade lhe mostrasse um caminho, o desejo de rever Fernanda lhe fez
fazer outro percurso. Discretamente, passou a percorrer os cômodos em sua
procura, e a avistou no terraço. Não quis se aproximar, se encostou no batente
da porta e fitou-a com o olhar. Fernanda pareceu sentir sua presença e olhou
diretamente em sua direção. Colocou um sorriso no canto da boca e bebeu
deliciosamente o líquido que estava no copo em suas mãos. O gesto fez o corpo
de Helena arrepiar. Sem dúvida alguma desejava aquela mulher. Ainda inebriada
com a imagem, ouviu alguém lhe chamar do quintal. Recompôs seus pensamentos, e
foi em direção ao chamado. Uma amiga de longa data, uma das poucas amigas da
sua lista presente na festa, pediu que contasse a sua companheira sobre um fato
hilário ocorrido na adolescência de ambas. Helena relembrou da história e
juntas começaram a rememorar as peripécias que haviam vivido há cerca de 20
anos. Por alguns minutos se esqueceu de Fernanda.
Não
percebeu quanto tempo ficou ali, mas não parecia ter sido muito, pois a festa
ainda estava cheia de gente, poucos haviam ido embora. Passou por uma ou outra
roda de amigos até que sua mente a levou a procurar por Fernanda. Percorreu o
quintal em sua busca, mas não a encontrou. Foi ao terraço, à cozinha, e até
aguardou na fila do banheiro, mas nada. Ela havia partido. A esperança voltou a
aparecer quando avistou as amigas dela encostadas em um carro, em frente ao
portão. Não ousou perguntar por Fernanda, pois seria descaramento demais. Mas
onde ela estaria? Já procurara em toda casa, exceto... na suíte. Mas o quarto
estava trancado e somente Suzana tinha a chave. Um mal pressentimento passou
pela sua mente. E mais por vontade de eliminá-lo do que por julgá-lo possível,
resolveu ir rumo às escadas que davam acesso à suíte.
Ao
subir alguns degraus, avistou Suzana e Fernanda conversando próximo à porta.
Suas sobrancelhas arquearam, como a questionar ambas sobre aquela situação
inusitada. Os olhos de Suzana mostrava domínio. Os de Fernanda, tranquilidade.
Suzana
abriu a porta do quarto e ambas entraram. A porta se fechou em seguida. Helena
não conseguia entender aquilo. O que havia perdido? Nada fazia sentido. Sua
mulher e seu desejo juntas na sua suíte?
Após
um tempo que se mostrou uma eternidade a porta se abriu. Suzana ajeitou o
cabelo e se pôs a descer as escadas. Passou por Helena, acariciou-lhe o rosto e
deu um beijo suave em sua boca. Ela lhe disse: agora está tudo bem.
Estarrecida, Helena fitou Fernanda, que assentiu com a cabeça. Suzana se dirigiu
ao quintal e Helena ficou ali, inerte.
Fernanda
foi até ela. Convidou-a a entrar no quarto que era dela. Helena hesitou. Aquela
cena não poderia estar acontecendo. Num ímpeto de busca pela sanidade, desceu
correndo as escadas, rumo ao terraço, precisava respirar.
Fernanda
a seguiu. Helena balançava a cabeça de forma a transparecer toda sua
incompreensão dos fatos. Fernanda tocou sua mão, a fez sentar. Agora está tudo
bem, disse. Sua namorada consentiu, completou. Não era preciso culpa, medo,
correr perigo. Ela havia permitido, consentido aquela situação. Quanto mais
Fernanda falava, mais insana o cenário se fazia. Helena olhou-a bem nos olhos e
disse apenas: Ela não tinha esse direito. Vocês não tinham esse direito. A
escolha deveria ter sido minha. Helena se levantou e saiu. Andou pelas ruas do
novo bairro, sem rumo; quando voltou, já havia menos que meia dúzia de pessoas
em sua nova casa. Fernanda e as amigas haviam ido embora e Suzana fora dormir,
os sonho dos justos.
Quadro: "Gala Nua Vista por Trás" (1960) - Salvador Dalí