sábado, 20 de outubro de 2012

Motivo Desconhecido


A casa, ainda com cheiro de tinta fresca, aguardava ansiosa a presença dos convidados. Nos fundos, a grama recém plantada evidenciava as marcas dos blocos de terra, enquanto nas salas e dormitórios, a mobília se ajeitava para dar espaço aos passos apressados das donas da festa.
A ideia de receber os amigos no lar há pouco comprado, partira de Suzana. Amante de agitos e pessoas, convencera Helena a fazer o que batizou de “recepção íntima só para amigos”. O problema era que os amigos, somando a lista de ambas, era bem maior que duzentos, das quais Suzana contribuía com 80%.
A sugestão que, em princípio assustara Helena, acabou por se estabelecer em definitivo em sua mente, na medida que Suzana a convencia nos deliciosos cafés da manhã na cama, ou à noite, em meio a carícias, beijos e movimentos convincentes.
Eis que era chegada a hora de receber os amigos, mostrar-lhes que o amor de ambas tinha novo endereço e que as portas estavam literalmente abertas.
Por volta das 19 horas foram chegando os convidados. Timidamente adentravam pela porta principal, receosos de desarrumar algo em um espaço tão arrumado,  limpo e novo.
Cinco anos de casamento estavam expostos ali nos detalhes do quadro de Dalí na escadaria que dava acesso à suíte do casal, nas luminárias psicodélicas do home, ou mesmo no quarto de visitas retrô. Tudo à mostra da plateia, que enquanto adentrava aos recintos, podia tanto admirar o bom gosto do casal, como identificá-las em suas semelhanças e diferenças.
Por volta das 21 horas, o fluxo aumentou. Já havia ali mais de cem pessoas, num entra e sai desvairado de cozinha, quintal, frente, banheiros, cozinha, banheiro, quintal, banheiro, frente, banheiro, banheiro. A cerveja parecia surtir efeito. As vozes eram mais altas e o receio de tocar em algo já desaparecera. Alguns copos iam ao chão, enquanto tufos de grama se deslocavam alhures.
O teor alcóolico no sangue de Helena a impossibilitava de se aborrecer com a desordem, enquanto Suzana percorria afoita cada roda de amigos, ciceroneando-os como uma verdadeira anfitriã.
Lá pelas tantas, todos os cômodos já haviam sido invadidos, com exceção da suíte do casal, trancada. A libido das pessoas davam sinais de que o álcool se fizera presente, e as danças se tornavam mais sensuais, na medida que também as paqueras eram menos discretas.
Olhares, mãos, tempo no banheiro mais demorado eram indícios que a festa se aproximava do seu clímax. Talvez por conta de dar atenção às visitas, ou talvez por outro motivo desconhecido, Helena e Suzana passaram pouco tempo juntas na festa. Se cruzavam aqui e ali, para subir latinhas de cerveja no congelador ou retirar mais um saco preto de lixo lotado até as tampas. Suzana, na medida que via a sujeira se avolumando, evitava Helena, com receio de que esta falasse algo que a aborreceria e estragaria com aquele momento que há muito aguardara e planejara.
No quintal, bocas se encontravam e a luz apagada. Onde antes havia muros de concreto, passou a existir um muro de pessoas. Mãos desfilavam em corpos que se moviam freneticamente.
Helena descia as escadas quando observou três novas pessoas chegando. Eram mulheres bem femininas, bonitas e sorridentes, não era da sua lista, com toda certeza, da de Suzana. Aquela festa lhe atentou para o fato de que não conhecia metade dos amigos da namorada.
Helena fez as honras da casa, se aproximando do grupo. Enquanto mostrava onde estava a geladeira e os comes, percebeu o olhar de uma delas entorpecido no seu. Talvez o álcool, ou outro motivo desconhecido, a fez subir um calor ao sentir aquele olhar. Procurou se concentrar nas suas palavras e terminar a explicação. Instruções dadas, duas saíram, mas justamente ela, não.
Seu nome era Fernanda, eram amigas de uma amiga de Suzana e após terem ido a um barzinho, entediante, resolveram arriscar. Helena sorriu com a autenticidade da garota e recebeu um elogio sobre seu sorriso. Corou. Fernanda percebeu e fixou o olhar ainda mais penetrante em Helena. Seu rosto permaneceu em chamas. Ao mesmo tempo que não tinha vontade de sair daquela situação, imaginava o perigo da mesma. Aquele um metro e meio de pele morena e cabelos pretos e enrolados prendia toda a sua atenção. Mente e corpo divergiam sobre o que fazer, e parecia que o corpo dominava a situação.
As amigas de Fernanda vieram chamá-la para ver alguém no quintal, e ela foi. Um misto de alívio e vazio fez Helena permanecer fixa ali. Resolveu fazer o trajeto de volta ao quarto, quando se deparou com o olhar de Suzana. Tentou parecer natural, perguntando sobre alguma obviedade da festa e saiu meio desconcertada. Ela não poderia perceber, pensou, mas o fato é que Suzana era muito observadora. Às vezes ela desconhecia por completo uma situação da qual Helena fazia parte, mas em poucos segundos de conversa era capaz de tomar conhecimento por completo da situação, como se estivesse presente. Helena temia essa “vidência” de Suzana e evitaria ao máximo lhe dar motivos para uma conversa.



Embora a racionalidade lhe mostrasse um caminho, o desejo de rever Fernanda lhe fez fazer outro percurso. Discretamente, passou a percorrer os cômodos em sua procura, e a avistou no terraço. Não quis se aproximar, se encostou no batente da porta e fitou-a com o olhar. Fernanda pareceu sentir sua presença e olhou diretamente em sua direção. Colocou um sorriso no canto da boca e bebeu deliciosamente o líquido que estava no copo em suas mãos. O gesto fez o corpo de Helena arrepiar. Sem dúvida alguma desejava aquela mulher. Ainda inebriada com a imagem, ouviu alguém lhe chamar do quintal. Recompôs seus pensamentos, e foi em direção ao chamado. Uma amiga de longa data, uma das poucas amigas da sua lista presente na festa, pediu que contasse a sua companheira sobre um fato hilário ocorrido na adolescência de ambas. Helena relembrou da história e juntas começaram a rememorar as peripécias que haviam vivido há cerca de 20 anos. Por alguns minutos se esqueceu de Fernanda.
Não percebeu quanto tempo ficou ali, mas não parecia ter sido muito, pois a festa ainda estava cheia de gente, poucos haviam ido embora. Passou por uma ou outra roda de amigos até que sua mente a levou a procurar por Fernanda. Percorreu o quintal em sua busca, mas não a encontrou. Foi ao terraço, à cozinha, e até aguardou na fila do banheiro, mas nada. Ela havia partido. A esperança voltou a aparecer quando avistou as amigas dela encostadas em um carro, em frente ao portão. Não ousou perguntar por Fernanda, pois seria descaramento demais. Mas onde ela estaria? Já procurara em toda casa, exceto... na suíte. Mas o quarto estava trancado e somente Suzana tinha a chave. Um mal pressentimento passou pela sua mente. E mais por vontade de eliminá-lo do que por julgá-lo possível, resolveu ir rumo às escadas que davam acesso à suíte.
Ao subir alguns degraus, avistou Suzana e Fernanda conversando próximo à porta. Suas sobrancelhas arquearam, como a questionar ambas sobre aquela situação inusitada. Os olhos de Suzana mostrava domínio. Os de Fernanda, tranquilidade.
Suzana abriu a porta do quarto e ambas entraram. A porta se fechou em seguida. Helena não conseguia entender aquilo. O que havia perdido? Nada fazia sentido. Sua mulher e seu desejo juntas na sua suíte?
Após um tempo que se mostrou uma eternidade a porta se abriu. Suzana ajeitou o cabelo e se pôs a descer as escadas. Passou por Helena, acariciou-lhe o rosto e deu um beijo suave em sua boca. Ela lhe disse: agora está tudo bem. Estarrecida, Helena fitou Fernanda, que assentiu com a cabeça. Suzana se dirigiu ao quintal e Helena ficou ali, inerte.
Fernanda foi até ela. Convidou-a a entrar no quarto que era dela. Helena hesitou. Aquela cena não poderia estar acontecendo. Num ímpeto de busca pela sanidade, desceu correndo as escadas, rumo ao terraço, precisava respirar.
Fernanda a seguiu. Helena balançava a cabeça de forma a transparecer toda sua incompreensão dos fatos. Fernanda tocou sua mão, a fez sentar. Agora está tudo bem, disse. Sua namorada consentiu, completou. Não era preciso culpa, medo, correr perigo. Ela havia permitido, consentido aquela situação. Quanto mais Fernanda falava, mais insana o cenário se fazia. Helena olhou-a bem nos olhos e disse apenas: Ela não tinha esse direito. Vocês não tinham esse direito. A escolha deveria ter sido minha. Helena se levantou e saiu. Andou pelas ruas do novo bairro, sem rumo; quando voltou, já havia menos que meia dúzia de pessoas em sua nova casa. Fernanda e as amigas haviam ido embora e Suzana fora dormir, os sonho dos justos.


Quadro: "Gala Nua Vista por Trás" (1960) - Salvador Dalí

Nenhum comentário:

Postar um comentário